Como a comunicação não violenta pode ajudar em casos de cancelamento nas redes sociais

Foto de quatro jovens sentados lado a lado olhando atentamente para as telas de seus celulares em suas mãos.
O “cancelamento” em massa pode não dar espaço para um processo de reflexão e mudança genuína | Imagem: katemangostar no Freepik

Nos últimos anos, o termo “cancelamento” se tornou parte do vocabulário das redes sociais. A ideia de expor e rejeitar publicamente alguém por declarações ou comportamentos problemáticos vem ganhando força, especialmente quando o assunto envolve temas sensíveis como sexismo, racismo ou qualquer outro tipo de discriminação.

Diante disso, surge uma questão: é possível aplicar a comunicação não violenta (CNV), um método que busca promover o diálogo e a empatia, em situações em que as emoções estão à flor da pele e as reações raivosas imediatas parecem dominar o cenário?

Com quase 30 anos de experiência em comunicação corporativa, fui percebendo o quanto a forma como nos comunicamos impacta profundamente as relações. Antigamente, expressar sentimentos, especialmente em situações de conflito, não era bem-visto, sendo muitas vezes interpretado como fraqueza.

Hoje, sob a luz da comunicação não violenta, vemos como o uso das emoções pode ser uma poderosa ferramenta para promover diálogos mais produtivos, inclusive em contextos desafiadores como os de cancelamento nas redes sociais.

A primeira coisa que precisamos reconhecer é que, nas redes sociais, as interações tendem a ser mais impulsivas e carregadas de emoções intensas. Quem nunca ficou com raiva ou sentiu indignação ao ver uma declaração ofensiva ou preconceituosa online? A CNV, proposta por Marshall Rosenberg, convida-nos a conectar com os sentimentos e necessidades por trás das palavras, tanto as nossas quanto as das outras pessoas envolvidas e isso pode ser desafiador em um ambiente tão volátil quanto as redes sociais.

Praticar a CNV não nos torna seres perfeitos ou monges, como muita gente acredita. Quem conhece e aplica a CNV também sente raiva, indignação e, muitas vezes, reage impulsivamente. A diferença é que, por meio dessa prática, aprendemos a voltar ao nosso eixo rapidamente e nos reconectar com o que realmente importa: entender o que provocou certas emoções e depoimentos para promover uma comunicação que construa pontes em vez de muros. Ou seja, para promover uma comunicação produtiva, a qual proporciona espaço para todos os lados se expressarem com respeito e buscarem uma solução que seja boa para todo mundo.

Protestos e cancelamentos: o desafio da CNV

Quando uma figura pública faz uma declaração preconceituosa ou discriminatória, a reação imediata costuma ser a de expor e condenar aquela pessoa, algo que pode ser importante para chamar atenção ao problema e trazer à tona discussões sobre equidade e justiça social, por exemplo.

No entanto, o “cancelamento” em massa pode não dar espaço para um processo de reflexão e mudança genuína. Embora muitas vezes traga atenção mais rápida para uma questão relevante para a sociedade, pode não permitir que a pessoa que foi “cancelada” tenha a chance de refletir profundamente sobre seus erros e buscar uma mudança verdadeira. Isso a leva, muitas vezes, a reagir de forma rasa dando apenas uma desculpa “forçada ou estratégica”, o que só intensifica a desconfiança de quem ataca e o desejo de punição.

Ou seja, ao invés de promover uma transformação genuína, o cancelamento tende a ser uma reação punitiva e pode não abrir espaço para que a pessoa se sinta motivada ou acolhida o suficiente para refletir e mudar de comportamento.

Podemos incentivar o aprendizado e a mudança com a comunicação não violenta. Isso, claro, não significa tolerar atitudes ofensivas, mas tentar equilibrar justiça com a possibilidade de transformação.

Equação difícil de equilibrar, não é mesmo? Mas existem alguns caminhos para isso, que listo a seguir.

Dicas de comunicação não violenta para quem deseja protestar nas redes sociais

Conecte-se com suas emoções antes de reagir

Diante de uma declaração ofensiva, é natural sentir raiva ou frustração e já querer sair brigando pelas redes sociais. A CNV nos convida a identificar esses sentimentos e entender que eles são sinais de necessidades que não estão sendo atendidas, como o desejo de respeito, igualdade ou justiça. Pergunte-se: “O que essa situação está me fazendo sentir? Qual necessidade minha foi frustrada?”

Procure entender o que motivou a outra pessoa

Isso não significa justificar atitudes ofensivas ou preconceituosas, mas tentar identificar quais necessidades a outra pessoa pode estar tentando atender, mesmo que de maneira desastrosa e oposta aos seus valores.

Muitas vezes, o preconceito vem de um lugar de ignorância ou medo, e abrir espaço para um diálogo pode ser mais eficaz do que simplesmente “cancelar”. Podemos nos perguntar: “O que será que essa pessoa está tentando expressar ou proteger, mesmo que de forma equivocada?”

Pratique a escuta ativa

A CNV nos ensina a escutar o outro lado com empatia, mesmo que o que ele ou ela diga seja difícil de ouvir. Isso pode ser especialmente complicado nas redes sociais, onde as interações são rápidas e muitas vezes superficiais, mas é possível praticar a escuta empática ao ler comentários e mensagens antes de reagir. Podemos tentar interpretar as emoções e necessidades que podem estar por trás da fala da outra pessoa.

Cuide da sua comunicação

Se decidir se posicionar nas redes, o ideal é que a sua mensagem seja firme, mas não violenta. Expressar seus sentimentos e necessidades com clareza, sem atacar a outra pessoa, é essencial para promover um ambiente mais saudável de discussão. Isso pode ser feito, por exemplo, dizendo algo como: “Fiquei realmente incomodada com essa declaração porque vejo nela muita falta de respeito e igualdade. Isso me faz pensar na necessidade de refletirmos mais sobre o impacto das nossas palavras, especialmente se queremos promover uma sociedade mais justa e tolerante.”

Espere o momento certo para agir

Um dos maiores desafios da CNV é saber quando é o melhor momento para agir. Muitas vezes, o impulso é comentar e reagir no calor da situação seguindo a maioria, principalmente quando sentimos, de alguma forma, uma pressão externa por posicionamento.

Será mesmo que quem se cala naquele momento é conivente com o agressor? Ou está apenas raciocinando e analisando melhor sobre o caso antes de decidir a forma agir? Esperar até que as emoções tenham esfriado pode resultar em uma resposta mais ponderada e eficaz.

Às vezes, até o desejo de sair em defesa da pessoa cancelada em meio ao processo massivo de cancelamento deve ser bem cauteloso porque suas palavras podem se voltar contra você e o conflito ser escalado para outras áreas.

Dicas de comunicação não violenta para a pessoa cancelada

Será que a pessoa cancelada também tem direito de exercer a CNV após sua manifestação desastrosa e polêmica nas redes sociais? Na minha percepção, sim! E precisamos dar essa oportunidade para ela, já que estamos defendendo um mundo mais justo e igualitário. Seguem algumas recomendações:

Ouça com empatia

Em vez de reagir imediatamente, dedique um tempo para realmente ouvir o que as pessoas estão dizendo. Por mais difícil que seja, tente compreender os sentimentos e necessidades por trás das críticas. O objetivo não é se justificar, mas entender as dores que sua fala ou ação causaram. Pergunte-se: Quais necessidades essas pessoas estão expressando? (Por exemplo: respeito, equidade de gênero, justiça).

Assuma a responsabilidade pelos seus atos

Reconheça o impacto do que foi dito ou feito, mesmo que não tenha sido sua intenção ofender. Um pedido de desculpas genuíno parte do reconhecimento – também genuíno – do erro e do entendimento do impacto que suas palavras causaram. Evite justificativas e frases como “fui mal interpretado” ou “em nenhum momento eu quis dizer tal coisa”. A CNV ensina a focar na responsabilidade, não na culpa.

Seja transparente sobre sua reflexão

Explique como você refletiu sobre o ocorrido e o que aprendeu com a situação. Em vez de simplesmente pedir desculpas, compartilhe como a reação e protestos das pessoas lhe ajudou a enxergar a situação por uma nova perspectiva. Dizer “Percebo agora como minhas palavras reforçam desigualdades que eu não tinha pensado antes” pode ser muito mais eficaz do que um pedido de desculpas “automático”.

Ofereça um plano de ação para mudança

A CNV valoriza ações concretas. Então, se você deseja verdadeiramente demonstrar que tem compromisso com a mudança, descreva como pretende agir de forma diferente no futuro. Isso pode incluir educar-se melhor sobre o tema, mudar práticas pessoais e profissionais e participar de discussões que ajudem a apoiar a causa que você criticou.

Não reaja com defesa ou agressão

É natural querer nos defender ou até mesmo contra-atacar quando estamos sob ataque. Isso é inerente ao ser humano, está ligado ao nosso senso de preservação da espécie. Mas a CNV sugere que, nessas situações, o melhor é respirar fundo, evitar respostas impulsivas e lembrar que o objetivo é resolver o conflito de maneira respeitosa e construtiva. Dizer algo como “Eu entendo que o que fiz causou dor, e quero saber mais sobre como posso evitar isso no futuro” pode abrir espaço para um diálogo mais saudável.

Dê tempo ao tempo

Mudança é um processo e pode levar tempo para que as pessoas percebam sua vontade genuína de mudar, principalmente se houver reincidência. Não espere que tudo volte ao normal logo após um pedido de desculpas. Continue demonstrando, com ações e atitudes, o seu compromisso com o aprendizado e a transformação.

Mas se o desejo de mudança não estiver em seus planos legítimos, não espere por acolhimento ou respeito por parte da massa ofendida. Se você quer uma nova chance ou a reversão do “cancelamento”, faça por merecer e tenha consciência de que isso exigirá muito esforço de sua parte. Mudar comportamento e crenças é um processo longo e pode ser bem doloroso psicologicamente.

Equilíbrio entre justiça e diálogo

Não se trata de ser conivente com comportamentos prejudiciais quando aplicamos a CNV em casos de cancelamento nas redes sociais, mas de tentar criar espaço para a reflexão e mudança, sempre que possível. A CNV nos lembra que todo mundo é capaz de transformação, e a crítica, quando feita com respeito e empatia, pode ser o catalisador dessa mudança.

Entretanto, isso não significa que devemos ignorar o impacto das palavras e ações prejudiciais. Muitas vezes, é necessário agir de forma firme para proteger os direitos de grupos minorizados ou sub-representados e exigir responsabilidade.

A diferença é que agir com CNV nos permite fazer isso sem abrir mão da nossa humanidade e sem nos deixar levar apenas pelas emoções.

Em vez de focar apenas na punição da pessoa que cometeu o erro, seria mais produtivo também direcionar a discussão para uma análise mais profunda da situação, buscando entender as causas e incentivar uma transformação genuína.

Isso significa criticar o comportamento ofensivo, sim, mas ao mesmo tempo promover um diálogo que incentive a reflexão, o aprendizado e a mudança — algo que a comunicação não violenta busca fazer. Assim, o protesto se torna uma forma de responsabilizar quem errou e uma boa oportunidade de conscientizar e educar mais pessoas, promovendo a transformação social.

Dessa forma, você equilibra a responsabilização com a possibilidade de mudança, o que pode ser mais eficaz a longo prazo. É a tal comunicação produtiva que eu tanto defendo. Como disse Rosenberg, “por trás de todo comportamento há uma necessidade.” E talvez, se conseguirmos enxergar isso, possamos contribuir para um mundo onde o diálogo e a justiça caminhem juntos, mesmo nas redes sociais.